image003A escravidão já foi tema de diversos filmes das mais variadas cinematografias do mundo. Pode até parecer um tema batido para se fazer um filme hoje, mas se olharmos a nossa volta em qualquer país com uma herança escravocrata (como o Brasil) veremos que suas marcas ainda estão presentes. Quando falei sobre o competente Fruitvale Station: A Última Parada (com o qual este filme faria uma interessante sessão dupla) falei sobre como o filme não era apenas uma denúncia de violência policial, mas um atestado da falta de alteridade e ao assistirmos este 12 Anos de Escravidão do diretor Steve McQueen vemos de onde vem esse distanciamento e as horrendas consequências que ele provoca.

A trama segue a história real de Solomon Northup (Chwitel Ejiofor), um homem negro livre que, em 1841, foi sequestrado e vendido como escravo e por doze anos viveu como trabalhador escravo em diversas propriedades dos Estados Unidos. A partir daí o filme irá mostrar não apenas a jornada de Solomon, mas como a escravidão é um construto social aberrante que desumaniza e degrada tanto vítima quanto algoz, permitindo a barbárie e a violência imperem.

Afinal, mesmo um fazendeiro menos impiedoso como Ford (Benedict Cumberbatch) que tenta tratá-los com gentileza ainda os vê como uma propriedade da qual pode dispor como quiser e mesmo todos os confortos que fornece não muda o fato que ainda assim estão todos cativos ali e desprovidos de liberdade, sujeitos aos caprichos de seu senhor e aos arroubos violentos dos capatazes. A naturalização deste comportamento brutal e desumano fica terrivelmente clara no incômodo plano-sequência em que Solomon é mantido preso pelo pescoço em uma corda, debatendo-se em agonia, e todas as pessoas ao seu redor, tanto escravos quanto membros da “casa grande”, seguem com suas atividades sem se importar com o homem às portas da morte que agoniza diante deles. Crianças brincam, mulheres lavam roupa e a esposa de Ford o observa da varanda como se visse um boi a ser abatido e não um ser humano.

Na verdade, toda a violência do filme é mais voltada para causar incômodo e repulsa pela sua brutalidade injustificada do que efetivamente tentar nos comover com o sofrimento dos personagens. As cenas de violência são longas e pontuadas por uma música que investe em acordes graves, que soam quase como algo saído de um filme de terror. Não é agradável de assistir, mas tampouco é a ideia de escravidão e de considerar alguém menos humano ou digno.

A montagem salta entre uma cena e outra muitas vezes sem fazer qualquer ligação entre elas, de um modo relativamente abrupto que acaba por nunca deixar clara a quantidade de tempo passada entre uma cena e outra. Assim sendo, o tempo apenas passa, mas nunca sabemos quanto, nos inserindo no mesmo universo perceptivo do protagonista que, cativo, também não deve ter uma noção muito clara da passagem de tempo.

A transformação de Solomon de homem livre em escravo é retratada com competência por Chwitel Ejiofor, mostrando que os danos da escravidão não são apenas físicos. Se no início ele se recusa a assumir sua condição, mas aos poucos sua vontade é quebrada e ele passa a recorrer a todo e qualquer expediente que possui apenas para garantir a sobrevivência, mas não se arrisca a algo mais. Ao fim do filme o vemos com um olhar opaco e apático, como se sua alma estivesse ausente do corpo e vemos como sua mente se acostumou aos anos de servidão no momento em que reencontra a família e pede desculpas, como se todo acontecido fosse de algum modo culpa dele.

Fica o destaque também para o trabalho de Lupita Nyong’o como a escrava Patsy, que inicialmente julga ser possível escapar dos horrores da escravidão se produzir bastante e deitar-se com seu senhor, o intempestivo Epps (Michael Fassbender), na esperança de que se afeiçoe a ela. Logicamente este é um terrível engano, Epps não deixa de vê-la como um objeto a ser usado, danificado e consertado a seu bel prazer e por mais que seus sentimentos o impeçam de lhe atingir com o chicote, não pensa duas vezes em ordenar que outro o faça. Assim, conforme o filme progride, vemos sua confiança erodir em um desespero e desamparo tão grande que chega a pensar em tirar a própria vida.

A breve presença de Brad Pitt como o carpinteiro Bass que martela de forma excessivamente expositiva e didática as ideias que o filme vinha até então construindo de modo bastante contundente. Incomoda também que a direção de Steve McQueen, que se mostrou muito mais arrojado em filmes como Hunger (2008) e Shame (2011), pareça demasiadamente acomodada e convencional, era de se esperar que ousasse mais (como no citado plano-sequência), principalmente ao tratar de algo já tão explorado.

12 Anos de Escravidão é um poderoso retrato de como a aceitação e banalização do preconceito dão origem a uma sociedade bárbara e violenta e nos lembra dos horrores que decorrem de tudo isso.

Nota: 9/10

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