Você não sabe o que é um homem médio. É um mostro, um perigoso delinquente, conformista, colonialista, racista, squiavista, ‘qualquercoisista’ (Orson Welles)
Esse ano o VI Seminário internacional de cinema e audiovisual tem entre os seus destaques a vida e obra do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Suas obras ficaram conhecidas pelo alto teor crítico à estrutura de governo italiana, na época muito ligada a igreja católica, conhecida por difundir os seus ideais e manter a sociedade em completa alienação. Pasolini também experimentou uma certa popularidade no início dos anos setenta com uma sequência polêmica de filmes entitulada a trilogia da vida: Decameron, Os contos de Canteburry e 1001 noites, os três filmes adaptados de obras literárias com alto teor erótico.

 

Hoje gostaria de destacar um dos curtas de Pasolini que foi exibido ontem no seminário: A Ricota – Episódios Cômicos | La Ricotta – Episodi comici (Itália/França, 1963). O filme conta a história de um diretor de cinema que resolve filmar uma versão da Paixão de Cristo na periferia de Roma, mas na verdade o destaque da obra não é Jesus Cristo, quem rouba a cena é Stracci, um trabalhador que interpreta um dos ladrões crucificado ao lado do Messias.

 

Desde o início do curta, Stracci demonstra estar com muita fome, mesmo assim resolve abrir mão do seu alimento para suprir os membros de sua família. Quando finalmente consegue algo para comer, um cachorrinho (daqueles de madame) come todo o seu almoço. Desesperado e ainda com fome, Stracci não desiste de participar do filme não sabendo que seu destino será trágico no fim das contas.
É interessante perceber o recurso de metalinguagem utilizado para satirizar tanto o governo, quanto a sociedade e a instituição católica. Pasolini colocou um filme dentro do filme para ter a liberdade de falar através do personagem diretor de forma irônica e agressiva tudo aquio que parecia estar «preso na garganta». O cachorrinho que come o almoço de Stracci é tratado como um príncipe com alimentação de primeira e tratamento VIP concedidos pela sua dona, enquanto Stracci nem tem o que comer (isso lhe parece familiar?).

 

Em um dos diálogos, o Cristo preso na cruz vê o «bom ladrão» interpretado por Stracci padecendo de fome, mas não tem nenhuma compaixão dele. Stracci reclama da fome e o Cristo responde algo do tipo: «Você reclama da fome e continua votando e apoiando aqueles que fazem você morrer de fome». Aqui fica claro que Stracci representa o proletariado não só daquela época mas o de hoje também, o personagem diretor (interpretado por Orson Welles) é um «pseudônimo» de Pasolini e os responsáveis pelo patrocínio ao «Paixão de Cristo» são os burgueses. Em outro diálogo genial, o diretor fala durante uma entrevista ao jornal local. Sarcasmo, ironia… Pasolini deixa o seu racado de forma brilhante, pra mim é a melhor cena do curta, veja abaixo:

 

Obs.: O áudio está em italiano e as legendas em inglês mas dá pra entender. Se tiver dúvidas, abaixo do vídeo eu coloquei as perguntas e respostas da entrevista e o texto após a leitura do poema, perdoe-me se tiver faltando alguma palavra (não falo italiano nem inglês, lamento)

Primeiro: O que você pretende expressar com este novo trabalho?
R = Meu íntimo, profundo, arcaico catolicismo.
O que você pensa da sociedade italiana?
R = A massa mais analfabeta e a burguesia mais ignorante da Europa.
E o que você acha da morte?
R = Como marxista é um fato que não posso considerar.
E a última pergunta: Qual a sua opinião sobre nosso grande diretor Federico Fellini?
R = (pensativo…) Ele dança, ele dança… (alfinetada no diretor Fellini que havia afirmado que o recurso de inserir um filme dentro do outro era um pretexto para tornar a obra mais onírica e menos realista)

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Após a entrevista, o diretor lê um poema para o repórter que não entende uma palavra do que foi lido e afirma ter entendido. Ao perceber a mentira do repórter, o diretor segue dizendo: «Você não entendeu porque é um homem médio, não é mesmo?»; «Sim, é verdade» responde o entrevistador. E aí, meu amigo o diretor massacra o coitado:
«Você não sabe o que é um homem médio. É um mostro, um perigoso delinquente, conformista, colonialista, racista, squiavista, «qualquercoisista» (medíocre)» – Orson Welles
A sociedade italiana na visão de Pasolini, homens médios representados pelos seus personagens marcantes.

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